Entrevista realizada por Bruno Bastos e Priscilla Buhr em abril de 2019
Você acha que existem especificidades em atender pessoas negras? Qualquer psicólogo já sai formado para esse atendimento ao público que sofre racismo?
A gente às vezes brinca que cada sujeito é universo, mas ele é um universo a partir do contexto em que ele nasce; existe um corpo de significados que serão impressos nesse sujeito. Se a gente for pensar no âmbito da clínica, a forma como a gente vai olhar para o paciente é muito única, a partir desse campo em que ele está inserido. Existem algumas diferenças técnicas e metodológicas a seguir, existem especificidades em decorrência dos determinantes sociais em que aquele sujeito é colocado até mesmo antes de ele nascer.
E como se reflete o recorte racial nessa análise do indivíduo?
Para que a gente possa compreender como o racismo, ou a raça, são construídos, a gente precisa perceber o que é até mesmo anterior ao sujeito. O sujeito nasce a partir de um ambiente social, histórico, cultural, ambiental, familiar. Então, quando a gente toca nas temáticas da raça, etnia, racismo, a gente precisa olhar para o Brasil e como ele se estruturou. Existem populações que a gente precisa olhar de forma específica na análise terapêutica. Por isso que o sistema Conselho de Psicologia propõe uma Comissão de Enfrentamento ao Racismo, por entender que o racismo causa sofrimento psíquico, afeta demasiadamente a psique do sujeito, a relação que ele mantém consigo e com o mundo; e ele [Conselho] precisa fazer com que a categoria e a sociedade percebam como o racismo é danoso para a saúde mental.
De que modo viver em uma sociedade racista, como a sociedade brasileira, impacta cada indivíduo, em especial nesse recorte da pesquisa, que são os adolescentes e adultos jovens?
Primeiro, talvez a gente possa perceber como o sujeito que nasce nessa sociedade brasileira é, muitas vezes, colocado em ideal de sujeito. Nós temos um ideal que a literatura coloca como um ideal heteronormativo, cisgênero, branco, que muitas vezes é colocado como um objeto de desejo. Então, se a gente pega uma sociedade cujo objeto de desejo para se realizar é o que ela não é, a gente vai ter uma fragmentação da identidade. A gente poderia pensar que a nossa cultura brasileira tem um fragmento da nossa identidade, do eu. Quando a gente vai pensar no jovem negro, de que a juventude é impregnada? A gente tem um lugar de conflito de identidade, social, de transformações que acontecem no sujeito, de tentativa de se conectar com grupos e com pessoas, a gente tem um processo de formação em que o sujeito está se perguntando: o que eu sou, para onde eu vou, o que me fez estar aqui?
Esses questionamentos, que também na fase adulta a gente faz, têm dois campos: o das ideias e o real, que é aquele em que a sociedade vai limitar, podar a possibilidade de acessar esses espaços. O jovem por si tem potência, desejo, vontade. Só que frente a essa potência, tem o que o mundo possibilita ou não a ele acessar. Então a gente se pergunta, o que isso pode ocasionar nesse sujeito?
A gente poderia refletir, inclusive, como essas realidades são distintas a partir das características biológicas, sociais, culturais e históricas que esse sujeito tem. Será que um sujeito da periferia, do Bode, que eu atendo, vai ser do mesmo jeito que um de Boa Viagem, por exemplo? Ou da Zona Norte? Tem características que vão ser distintas a partir da vivência desse sujeito. Quando vamos debater sobre questões de classe, de gênero, de raça, todas elas vão trazer algumas identidades. Só que algumas identidades não precisam ser expressas. Vocês sabem que eu sou psicólogo porque eu falei para vocês; mas antes disso, o meu corpo vai falar para vocês o que eu sou. Então, quando a gente coloca que a raça é anterior a tudo isso, é porque ela é um lugar de fala por existência, por expressão corporal. Então tem uma questão do valor atribuído a esses corpos. Até tinha reflexões bem interessantes sobre genocídio da população negra em que algumas reflexões perguntam se o processo de embranquecimento terminou ou se ele continua a existir. Se a gente pensar em uma população de mais de 30 mil jovens que estão morrendo por ano, será que o genocídio ainda continua? E se continua, será que a gente está em uma sociedade racista?
Existe um debate sobre o “mito da democracia racial”, sobre falas que dizem que existe uma igualdade racial; algumas literaturas vão dizer que o racismo no Brasil é um dos mais perversos que existem, pois ele se transveste de uma miscigenação para continuar a existir. Ele encontra outras formas e continua a se manter. Por isso é importante pensar em ambientes que precisam adotar posicionamentos antirracistas; não é apenas refletir sobre racismo, é ser antirracista, pois o racismo mata e a gente percebe isso nos jovens, seja diretamente nas mortes por armas de fogo, que é um dos primeiros índices da morte de jovens, ou uma morte autoinfligida.
Essa questão do descobrimento da identidade dos jovens casa com um ponto da própria pesquisa do Ministério da Saúde, que aponta que esses estereótipos raciais são danosos em relação ao desenvolvimento do potencial dos adolescentes e jovens negros em relação ao papel da escola. Até isso tira esses meninos da escola e de uma possibilidade de um futuro melhor para eles. Como você compreende o papel desse espaço de socialização tão importante?
Acho que a gente poderia entrar em alguns determinantes sociais. O que acontece para o jovem não continuar na escola? O que faz com que ele seja ceifado dessa possibilidade? Existe alguma coisa que acontece no ambiente que ceifa, seja a renda familiar que ele não tem e ele precisa trabalhar; ou o conflito que o leva a se engajar em universos de extrema vulnerabilidade, como as drogas ou a própria criminalidade; ou a própria relação com um sistema familiar já fragmentado por uma estrutura maior do que ele próprio; são variáveis que inclusive são anteriores à atitude do sujeito de sair do ambiente escolar. Nós temos um lugar de transformação potente com uma realidade que, inclusive está ao redor e dentro dessa escola.
Existem algumas reflexões interessantes sobre isso; algumas pesquisas falam sobre critérios como evasão escolar, a escolaridade que esse sujeito consegue completar; só que o racismo perpassa tanta coisa que aí nós temos vencedores que tentam, com todo o esforço do mundo, quebrar várias barreiras na escola, na família, quando se formam para depois entrar na faculdade, para conseguir concluir a faculdade. Quando eles concluem têm a barreira do mercado, para conseguir exercer aquilo que eles tentaram galgar. O racismo está na estrutura de constituição da identidade; é “normal” a gente perceber e observar o racismo, ver que uma turma de Medicina que se forma tem tonalidade fenotípica branca e que o gari que está na rua é negro. É normal colocar esses corpos negros em determinados setores e excluí-los de outros. Anormal é ver o contrário.
Por exemplo, ver um sujeito negro no STF, em um cargo no Ministério Público, ou em determinados setores. O racismo está na forma em que a gente pressupõe onde aqueles sujeitos podem ou não ocupar determinados espaços. Por isso tem debates sobre o racismo ambiental, por exemplo. Se um grupo de jovens tentar dançar passinho no Marco Zero [praça no bairro do Recife], vai ter uma atribuição de sentido diferente do que na periferia dele.
E na Jaqueira, principalmente...
Nossa Senhora! Tem lugares que eles podem ocupar e outros que não, e os jovens sabem disso. A gente trabalha com a perspectiva de que o racismo é estrutural, ela está nas entranhas da nossa constituição de identidade como sociedade e como sujeitos. E ele tem uma função de manter as relações de poder, é institucional, pois está nas instituições que são constituídas pelos sujeitos. Por isso que tem movimentos que tentam pensar o racismo dentro das instituições.
Entrando na temática do suicídio, como funciona a política da saúde mental? Tem espaço para o viés racial nessa política?
A gente entende que essas políticas são interseccionais, elas devem se comunicar. Nós temos algumas políticas públicas que falam sobre as questões raciais e como os sistemas devem se comportar frente a isso. A política está no mundo das ideias; mas no processo de fazer a prática da política, existe uma dificuldade enorme.
Ou seja, não se operacionaliza o que se pretende.
Isso. Porque o racismo é estrutural. Não adianta apenas debater com os movimentos sociais, com os intelectuais, fazer uma política que, quando for para a prática, não tem investimento, não tem um cuidado para que a equipe tenha sensibilidade para isso. Existem ações afirmativas, que são formas de trazer essa temática específica de forma prática e não apenas da forma politicamente estruturada.
Pensando na rede de atenção psicossocial, ela está estruturada e funcional?
A gente tem uma rede de saúde mental que se embasa no movimento antimanicomial, para conceber novas formas de cuidado. A rede de atenção à saúde mental tem, na sua estrutura, um viés muito interessante porque ela entra nos espaços e possibilita que as pessoas ingressem nos espaços, como o Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas ( CAPS AD), o CAPS Infantil. São alguns espaços espalhados no Estado e no município do Recife. Uma das questões que eu pesquiso no meu mestrado é sobre o CAPS AD, pensando no perfil do usuário, no racismo estrutural nesse espaço e as formas de esse sujeito se perceber como negro ou não negro. Como o CAPS é um espaço específico, o perfil dos usuários é negro, de periferia, pobre, muitas vezes em situação de rua. Então a gente percebe que a questão racial está impregnada no corpo desse sujeito que está chegando no CAPS. Uma parte desse público chega no CAPS. Só que tem algumas outras questões, se a gente pensa no sistema de atenção social: esses jovens estão, em sua maioria, dentro das suas casas, das suas comunidades. Uma das coisas para promover a prevenção do suicídio são ações que consigam chegar na ponta, chegar nesses grupos para trazer potencialidades aos esse jovens no espaço em que eles estão. É muito raro um jovem dizer “eu vou para o CAPS”.
Você consegue perceber o jovem sabendo o que é o CAPS?
Isso é que é interessante, para que a gente possa perceber que o jovem vive outra realidade. Se a gente for pensar em ações de prevenção ao suicídio, ao sofrimento psíquico, à depressão, se o sistema esperar [pelo usuário], ele não chega. Por isso as ações têm que ser na ponta, e muitas ONGs conseguem fazer maravilhosas ações afirmativas que potencializam que esses jovens sigam outros caminhos que não aqueles socialmente determinados para eles, seja a criminalidade, as drogas ou a morte, inclusive. Então existe um sistema de saúde mental que é potente, mas ele precisa estar alinhado com ações que cheguem na ponta, porque esses jovens estão lá.
No seu trabalho, como isso se reflete no atendimento clínico?
Se me permite, queria falar de duas coisas: uma é isso e outra é como a Psicologia, como ciência, se coloca frente ao racismo. Existem diversas ações na Psicologia que tentam trazer à tona aquilo que está escondido. Então o racismo, apesar de ser uma ação extremamente violenta, muitas vezes ele tenta se esconder. A Psicologia então se coloca em um lugar antirracista; o sistema Conselho se coloca nesse lugar pois o racismo faz sofrer, causa danos e mata. A categoria concebe que é preciso combater o racismo como um determinante para sofrimentos psíquicos não apenas para o negro, mas para os não negros também, porque ele afeta todos os públicos, cada um da sua maneira, a partir do lugar que você ocupa na sociedade. A Psicologia tem um compromisso de trazer isso à tona e enfrentar o racismo como algo que precisa ser combatido. Por isso que o nome da comissão aqui em Pernambuco é de Enfrentamento ao Racismo.
No ambiente clínico, muitas vezes, a população não consegue chegar porque ela precisa trabalhar, ela precisa viver, mesmo que o sofrimento dela seja algo muito forte e muito denso, mas existe o “corre” da vida. Nós conseguimos atender algumas pessoas, mas nós temos 54% da população brasileira negra, que se autodetermina assim. Mas na clínica a gente percebe, ainda, que as pessoas que a gente atende não são as pessoas que estão nas periferias, em todas as estatísticas. Então é preciso refletir se e como esse sujeito consegue acessar esse serviço de clínica ou ambulatorial. É preciso entender onde é que esses sujeitos estão. Existe a necessidade física, o sujeito precisa comer, ter uma casa, trazer alguma coisa para a família. Uma das coisas que a gente debate na questão racial é que ela é tão perversa que a gente encontra uma valorização de conseguir um trabalho ao invés de entrar na faculdade, porque a faculdade daria lá no futuro, mas a fome é para agora.
Existe alguma iniciativa comunitária de levar o atendimento para esse público? Dentro da comunidade, inserida na realidade dessas pessoas, que não exija um deslocamento para ser atendido?
A nível público, do Estado, existe, ou pelo menos existia, o Programa Atitude que ia nos espaços específicos, com consultório na rua e de rua, na perspectiva de assistência social. Um programa extremamente valioso e que é pernambucano, que busca ir nas comunidades e, depois, caso seja necessário, trazer essas pessoas para o sistema. Mas primeiro ir buscar lá dentro [das comunidades]. Então a nível público tem o Atitude e outras ações que envolvem essa ideia. Outras coisas são movimentos sociais e ONGs que conseguem acolher e trabalhar algumas questões que são importantes do sujeito, como autovalorização, identidade, liderança, para que esse jovem se identifique como um sujeito negro, compreenda o sistema em que ele está inserido e seja, a partir daí, um agente transformador da vida dele ou da vida ao seu redor. As ONGs, movimentos sociais e o poder público conseguem, a priori, chegar nessas comunidades. Mas essas mazelas continuam.
E onde está o elemento dificultador? É falta de estrutura, é falta de interesse?
Olha, nossos corpos têm valor. Mas tem corpos que não têm valor, ou se têm, são marginalizados. Nós temos mais de 60 mil pessoas mortas por ano [no Brasil], das quais mais de 30 mil jovens. Um homem negro acabou de ser morto com 80 tiros, então a gente tem uma necessidade de perceber como esse racismo está nas estruturas da nossa forma de nos relacionar com esses sujeitos. Às vezes, as políticas públicas movimentadas por movimentos sociais ou grupos que se afinam com os direitos humanos buscam atingir essa estrutura. Mas existe um lugar aí que é de relações de poderes. A relação de poder vai impedir, e ainda impede, porque a gente está vendo o que acontece nos últimos anos com o Estado brasileiro, que essa estrutura mude. Conversando com vários profissionais que fazem reflexões sobre como essas políticas foram construídas nos últimos 10 a 20 anos, e como foram importantes políticas afirmativas, políticas que buscam justiça social, fazer com que esses jovens entrem nas universidades, entrem nas faculdades, entrem em espaços de transformação.
E a partir disso eles transformam essas estruturas; mas na prática, a gente ainda vê diversas dificuldades para esses jovens se manterem dentro das instituições. Fora disso, a gente percebe retrocessos que estão acontecendo nesses ambientes: um sistema de saúde pública que está sendo sucateado, os CAPS estão perdendo alguns investimentos, que estão indo para outros espaços. E ele é o lugar de acesso para essa população. Então sobre essa provocação, o que impede: a literatura mostra que os corpos negros têm menos valor; a crença de que o racismo não existe, de que ele está na cabeça do outro, de que existe uma igualdade racial no Brasil. Por isso muitos grupos vão falar que o racismo brasileiro é muito perverso, porque ele se esconde a partir dessas narrativas. Mas amanhã, o dia de trabalho vai ser dia de branco, não vai ser dia de negro. Percebam como essas palavras estruturam esse sujeito, na estrutura do Brasil real, que se apresenta nas estatísticas do Atlas da Violência, nessa pesquisa do Ministério da Saúde, na evasão escolar, na violência sofrida diariamente por essas populações, na impossibilidade de ir para um emprego e não ser chamado porque o endereço diz que ele mora em determinado lugar. Tem todas essas variáveis estruturais, determinantes que possibilitam que o Estado se equilibre nas suas desigualdades.
Eu tenho amigos e amigas que estão dentro da militância e tenho percebido que é um lugar de privilégio, por estar trabalhando principalmente com jovens. Mas ao mesmo tempo, um amigo me falou que estar sabendo do que acontece leva a um lugar de muita dor, de muito sofrimento por lidar com essas questões que são muito cruéis. Ele disse que saindo de noite, do Bode, duas mulheres atravessaram a rua com medo dele; passou a manhã e a tarde falando com jovens para não estar nessa situação e aconteceu com ele. Eu estou vendo amigos meus que combatem isso se afundando, ativistas que estão em depressão pesada. É difícil estar nesse lugar de botar a cara na frente…
Acho que a sua reflexão é massa! Porque ela entra na perspectiva de saber, da tomada de consciência e da responsabilidade que é observar que todas essas conquistas e espaços estão sendo destruídos e os significados para a vida desses sujeitos. Quem está no movimento está vivendo isso, não está apenas teorizando. Ele vive isso na realidade do grupo, fora do grupo, na vida dele, como a pigmentação do corpo dele vai ser para o outro um alerta que aquele corpo representa perigo.
Ele menciona que ser gatilho de medo é muito cruel.
Isso. O medo é construído, esses gatilhos são socialmente construídos e dizem para esses sujeitos negros e não negros que você representa um perigo apenas por existir. Então é preciso esconder a bolsa, travar o elevador. A estética negra é uma das coisas que mais são atacadas. Pensando um pouco no suicídio, existem algumas questões que embasam a reflexão sobre o suicídio; uma delas é a desesperança. Você está nesses ambientes de intensa luta e tudo isso parece ser perdido: talvez esse elemento seja ativado. Pode causar depressão, esse sofrimento psíquico que poderia ser diagnosticado. São ambientes da desesperança, desespero e desamparo; é o Estado que está matando, para quem eu vou recorrer? Imagina isso para um jovem, que está querendo ingressar nesses espaços, realizar tudo que seja possível, mas tem uma coisa que impede que ele possa acessar esses lugares. O que isso causa para um jovem?
Por isso que quando a gente fala em prevenção, é inserir esse jovem em um grupo de jovens, em movimentos sociais que, apesar de trazer o sofrimento, traz um amparo. Esses espaços são potentes, não são fáceis porque a cada dia a pessoa vai tomando consciência das coisas, mas são potentes. Esses são os espaços em que coletivamente é possível se colocar e se sustentar. A juventude é muito sábia quando os jovens se juntam em grupos de rap, de hip hop, em grupos de movimentos LGBTs, o próprio movimento negro. Eles se juntam nesses grupos para que coletivamente possam se sustentar, se fortalecer e enfrentar a realidade do Brasil.